sábado, 3 de setembro de 2011

Dentro do Espelho ou Conselho de doido pra doido

   Estava aqui perguntando, como tenho andado só e ao mesmo tempo acompanhada! Podem ser aqueles passos na escada que somem sem explicação.
   Das coisas que vejo, não afirmo. Das muitas que penso, poucas transcrevo ao papel. Que impertinente e grande o meu medo de pronunciar sobre! No meu âmago, um tiro surdo no escuro, um grito de Munch, um grito de horror? Malgrado, dia a dia me sinto cada vez mais sortida e estou ligeiramente só. Não sei se o que me preenche a vida e a casa são várias de mim ou se serão eles – que me espiam na calada da noite.
  Tenho estado sozinha, a espiar os cacos, a arrumar a casa, a arrumar a cabeça talvez. Já andam me taxando de louca por aí porque vivo comigo. Na solidão é que pergunto – estou eu ou estamos nós? Porque sou tantas, e há vários deles que são elas e também falam. E onde estamos hoje, onde estaremos se eu morrer?
  E por andar assim particular é que estou sempre cercada de gente. Com toda a minha solicitude sem destinatário. Um remetente a vaguear. Um remetente nauseabundo perambula entre os botecos da rua sem encontrar por lá coisa alguma que já não tenha conhecido, notado, querido.
  Chegamos ao gran finale. Em nenhum outro momento veremos a face da letargia - com tanta sede - e um mundo novo se abrirá de antemão para nós, decifra-me ou te devoro. Que surpresa estar comigo. Mas eu não quero isso aqui não!
  A minha solicitude deseja inefavelmente um outrem. Pelo excesso de reflexão, refletimos acerca de coisas vãs. Pelo exagero de tentar o próprio conhecimento (locução pomposa essa), descobrimos que é melhor perguntar a outro. Tudo é mais simples do que parece. Tentar entender a simplicidade da vida é erro. Fica complexo demais. Como se cansar de esperar o grande vento de todos os tempos, e não saber que ele se eclipsou sob a superfície das águas que fazem do homem, homem.
  Conheceis a verdade e ela vos libertará. Antes que eu mergulhe nesta dúbia e insigne promessa, peço a Deus que me venha o destinatário para minhas fracas palavras. Palavras sobram, falta-me com quem as falar. Por conseguinte de estar proscrita no deserto e nas palavras ter o meu consolo e o maior dos tormentos, digo que preciso ir embora antes que eu me torne uma palavra. Encerrada em mim mesma, sem contexto para me abrigar.
  Porque solidão vez ou outra na vida é remédio dos bons. Sentir-se só obriga a pensar. O pensamento é recurso da dúvida que interpela o mistério.
  Para tantas palavras dá-se um nome: loucura. Por tal estou bem acompanhada. Então, ame antes que conserte a cabeça demais! Elas estão aqui, dentro do espelho.

Esboço de Velharias

  Começarei a partir de hoje a repostagem de escritos antigos. Na verdade, eles foram concebidos em tempos remotos nos quais eu ainda sabia (o que era) escrever. Escrevinhar, ao menos. Hoje, fiquei muda.

  É em nome de toda essa saudade que não me abandona que viajo os textos do Recanto das Letras para o Blog. O sentimento de perda e eteriedade do meu "duplo" literário jamais cessarão. E as negativas em torno de toda e qualquer palavra minha permanecem.

  Antes do querido Dentro do espelho, vai um dos trechos mais lindos que já ousei ler em minha vida. Assim como o de minha autoria numa fase remota, este traz à superfície todo o subjacente do meu coração atual. Coração mutante, coração pirata.

  "Faz muitos anos que isso aconteceu. A parede da escada, onde vi subir o reflexo de sua vela, há muito já não existe. Em mim, tantas coisas foram destruídas, coisas que eu julgava fossem durar para sempre, e se construíram novas, dando origem a penas e alegrias novas que eu não teria podido prever então, assim como as antigas se tornaram difíceis de compreender. Também há muito tempo meu pai deixou de poder dizer a mamãe: "Vai com o menino." A possibilidade de semelhantes horas nunca renascerá para mim. Porém, desde algum tempo, recomeço a perceber muito bem, se apuro os ouvidos, os soluços que então consegui conter na presença de meu pai, e que só rebentaram quando fiquei a sós com mamãe. Na verdade, eles nunca cessaram, e é somente porque a vida se vai agora emudecendo cada vez mais a meu redor que os ouço de novo, como os sinos do convento que parecem tão silenciosos durante o dia por causa dos barulhos da cidade que os julgamos parados, mas que voltam a soar no silêncio da noite."

(Proust, No caminho de Swann)